A vida de Gramsci
Antonio Gramsci é o fundador do Partido Comunista da Itália. A história das suas lutas, do seu martírio no cárcere e das vitórias póstumas do seu espírito é leitura edificante para os adeptos do credo político que foi o seu. Mas suas atividades de altiva independência em parte só agora reveladas, também o tornam caro a todos os que apreciam a heresia, the right to dissent , em suma: a liberdade. A recordação de Gramsci deve ser igualmente cara a todos os que reivindicam a verdadeira democracia, contra as hipocrisias do elitismo. Sua obra de grande intelectual — um dos maiores do século XX — inspira respeito até aos adversários do seu credo: inspirou respeito também ao intransigente Benedetto Croce que “só com reverência e com afeto” se permitiu falar desse morto, desse símbolo vivo de uma resistência inquebrantável nos cárceres mais escuros da tirania. Antonio Gramsci foi um mártir e quase um santo. Sua história é um exemplum vitae humanae .
A vida de Gramsci! Seria um livro para todos. Mas não pretendo escrevê-lo. Em parte porque minha intenção é outra; em parte porque os fatos já são bem conhecidos, de modo que basta recordá-los.
1. Antonio Gramsci nasceu em 23 de janeiro de 1891 em Ales, província de Cagliari, na Ilha de Sardegna, na parte mais pobre e mais atrasada da Itália, filho de gente humilde ao qual só duras privações permitiram o estudo na Universidade de Turim, onde em 1915 aderiu ao socialismo, no mesmo ano em que Benito Mussolini saiu das fileiras do partido socialista para entrar nas do nacionalismo reacionário e belicoso, que seria depois o berço do fascismo. Enquanto o renegado sonhava, nas trincheiras, sua futura ditadura, o jovem Gramsci organizou em 1917 a greve dos operários de Turim contra a continuação da guerra. Restabelecida, precariamente, a paz européia, e entrando a Itália numa fase de graves perturbações sociais, Gramsci fundou o semanário Ordine Nuovo que reuniu em breve os mais avançados intelectuais da península. Organizou os consigli di fabbrica que, em momentos de greve, ocuparam fábricas e usinas, preparando-se para administrá-los. Em abril de 1920 dirigiu a greve geral. No Congresso do Partido Socialista Italiano em Livorno, em janeiro de 1921, foi Gramsci o líder da ala radical que saiu, constituindo-se como Partido Comunista Italiano. Foi o primeiro secretário-geral desse partido, que o elegeu deputado e do qual fundou o órgão jornalístico, o diário L´Unità. Enquanto isso, fortaleceu-se cada vez mais a ditadura fascista, que ainda tolerava a existência do Parlamento para oferecer ao estrangeiro o espetáculo de uma democracia simulada. Mussolini conseguiu vencer a crise mais grave do seu regime, a indignação moral do país inteiro depois do assassinato de Matteoti. Só então, o terrorismo iniciou, sem freios, a opressão totalitária. Os mandatos dos deputados oposicionistas foram cassados. Perdida a imunidade parlamentar, Gramsci foi preso em 8 de novembro de 1926 e confinado na ilha de Ustica, perto de Palermo. Alguns meses depois, transportaram-no de volta, algemado, para Roma. Processo perante o Tribunal especial. O Promotor falou com franqueza: “Devemos”, dizia aos juízes, “inutilizar por 20 anos esse cérebro perigoso”: a 20 anos de reclusão na Penitenciária de Turi, perto de Bari, foi Gramsci condenado. Submeteram-no a um regime severo, embora permitindo-lhe escrever cartas e notas, permissão da qual nasceu a imponente obra desse espírito encarcerado. Mas em 1933 os sintomas da tuberculose dos ossos tornaram-se evidentes. A doença fez progressos rápidos. Enfim, as autoridades fascistas não quiseram que o preso morresse como mártir dentro dos muros do cárcere. Gramsci foi solto três dias antes do desenlace. Morreu em 27 de abril de 1937 numa clínica particular em Roma. Foi sepultado no Cemitério dos Ingleses, à sombra da Pirâmide de Cestio, perto do túmulo de Keats. Uma coroa de verdes permanentes, com fita vermelha, indica o lugar em que dormem seus pobres restos mortais.
2. Seria esta a vida de Antonio Gramsci: de um homem morto há 29 anos e que não acreditava na ressurreição dos corpos. Acreditamos, por nossa vez, no preceito evangélico que manda deixar aos mortos o mister de enterrar os mortos. Importam os vivos. No túmulo de Keats, perto daquele de Gramsci, o poeta infeliz mandara gravar as palavras: “Eis um cujo nome foi escrito na água”. Mas na verdade tinha escrito os versos imortais em língua inglesa. Quando Antonio Gramsci foi, em 1937, enterrado, o que ele tinha feito e pensado também parecia “escrito na água”. E hoje sua personalidade está mais viva que jamais e o poeta Pier Paolo Pasolini, no colóquio com o sepultado do Cemitério dos Ingleses que abre o volume Le ceneri di Gramsci , pode acrescentar “às fadigas, contradições, pensamentos, atos, lutas e vitórias” a homenagem de una luce poética . A personalidade de Gramsci continua uma força viva.
Tratando-se de um discípulo de Croce — à filosofia do pensador napolitano dedicou Gramsci um volume, escrito na prisão —, temos o direito de empregar a distinção crociana entre a personalidade empírica e a personalidade “poética”, isto é, que se exprime através de versos ou de pensamentos ou mesmo de ação. A personalidade “atual” de Gramsci desapareceu. Mas sua personalidade “poética”, de escritor, pensador e homem de ação, continua atual e é — veremos — uma atualidade para nós e conosco. Eis por que importa a Vida de Gramsci.
Muitos estrangeiros, fora da Itália, já se admiravam do alto nível intelectual do Partido fundado por Gramsci. Intelectuais de estatura, os líderes Palmiro Togliatti e Umberto Terracini. Ao PCI pertencem ou pertenceram grandes professores universitários como Luigi Russo, Eugenio Garin e Natalino Sapegno, escritores como Cesare Pavese, Elio Vittorini, Alberto Moravia, Salvatore Quasimodo, Vasco Pratolini, Pier Paolo Pasolini, os cineastas Vittorio De Sica, Cesare Zavattini, Lucchino Visconti, o pintor Guttuso, o compositor Nono. A fascinação exercida pela personalidade já desaparecida, pela recordação de Gramsci tem contribuído para essa atração intelectual do Partido. Decisivo, porém, é um fato do qual o fundador do Partido apenas participa. Durante mais de 30 anos, a filosofia de Benedetto Croce dominava espiritualmente a Itália, inclusive os anticrocianos que nunca conseguiram livrar-se totalmente da influência do filósofo. Toda a vida italiana da primeira metade do século XX, a literatura, as disciplinas históricas e científicas, o pensamento político e econômico estavam e estão imbuídos de espírito filosófico. Um antimarxista italiano não é ou não precisa ser um propagandista vulgar, mas é ou pode ser um crociano. Um marxista italiano é, em regra, um ex-crociano. Antonio Gramsci também foi ex-crociano e essa sua formação filosófica abriu-lhe os olhos para interpretações erradas, porque pouco filosóficas, do marxismo.
Como secretário-geral do Partido fundado por ele, Gramsci teve de combater radicalismos (“a doença infantil do radicalismo”) e a tentação contrária de acomodação reformista. Enfim, a vitória total da ditadura fascista acabou com os adversários de Gramsci dentro do Partido: tornando impossível a revolta armada exigida pelos radicais e recusando a adesão dos reformistas. Gramsci já estava na Penitenciária de Turi — e esse contraste, entre o ditador vitorioso e soberbo e o preso reduzido à impotência e o silêncio — é a primeira vez que a atualidade de Gramsci, hic et nunc , aqui e agora, nos toca vivamente.
Pois qual tinha sido o “crime” que levara Gramsci para o cárcere? Não penso em pintar-lhe o retrato como de um anjo inocente, condenado sem culpa nenhuma. Foi ele homem de ação revolucionária, disposto a subverter pela força e pela violência a ordem estabelecida. Mas apenas estava disposto para tanto, sem chegar a realizar seus projetos, ao passo que o ditador fascista tinha realizado a subversão, colocando-se a si próprio acima de todas as leis humanas e divinas e atribuindo-se o direito de punir com requintes de crueldade, e inapelavelmente, o crime político que ele próprio perpetrou. Alega-se salvar a democracia ou a civilização ocidental, destruindo-se a democracia e violando-se a civilização. Compreendemos, hic et nunc , aqui e agora, a situação de Mussolini na ditadura e a de Gramsci na prisão. É uma atualidade que continua e percebemos que Gramsci, embora postumamente, venceu.
3. Mas não vamos antecipar nada. Ainda estamos em 1926: Gramsci na prisão, e os democratas italianos de todas as nuanças perseguidos e no ostracismo. Como se comportar, nessa situação aparentemente sem saída? Comportavam-se como se todos estivessem, com Gramsci, na prisão. Esperavam um milagre: pela marcha inexorável dos acontecimentos históricos. O preso, dentro dos muros da Penitenciária de Turi, sabia disso; e discordou. Reconheceu, sim, naquele fatalismo passivo uma fonte de fortalecimento moral em tempos de opressão. Definiu a fé em certa razionalità della storia como sucedâneo da fé dos cristãos na Providência divina. Mas rejeitou a analogia, exigindo a permanente tomada de consciência, única fonte possível — naquelas circunstâncias — do futuro ativismo revolucionário.
Esse ativismo é bem marxista. Ou então, para defini-lo mais exatamente: é marxista-leninista. Mas Gramsci não encontrara os argumentos para refutar o fatalismo nem em Marx nem em Lenin. Sua doutrina da consciência como fonte de ação — que lembra, de longe, pensamentos de Lukács e Ernst Bloch — é herança do seu mestre ou ex-mestre Croce. Como discípulo do filósofo de Nápoles, exigiu Gramsci um marxismo humanista,base etica del nuovo Stato . Como discípulo de Croce, Gramsci não podia imaginar a revolução política e social sem a consideração devida dos fatores culturais. Mas esses pensamentos e raciocínios todos não seriam tipicamente revisionistas?
A crítica de Gramsci contra as falsas interpretações do marxismo, unilateralmente economicistas e mecanicistas, também se baseia em pensamentos de Croce. Enquanto o Partido Comunista Italiano sempre, desde 1945, defendeu a ortodoxia, no sentido de Moscou, como doutrina de Gramsci, os adversários do Partido nunca deixaram de focalizar aquelas diferenças: o santo do comunismo italiano também é venerado como santo nos altares do revisionismo internacional, ao lado de Trotski, Bogdanov, Deborin, Lukács, Bloch e Lefebvre. A verdade é que nos escritos e manifestações de Gramsci se encontram trechos e frases capazes de justificar esta e aquela interpretação. Seriam as “contradições” às quais Pasolini, em Le ceneri di Gramsci , prestou a homenagem de sualuce poética . Estou convencido que essas contradições se revelarão, futuramente, como elos do seu pensamento dialético. Limito-me, agora, a focalizá-las sem tentativa nenhuma de escondê-las.
Bem ortodoxamente exigiu Gramsci, antes de tudo, a unidade doutrinária. Mas para justificá-la apelou, mais uma vez, para Croce: como este, citou o exemplo da unidade doutrinária do catolicismo. Anticlerical, como sempre foram os intelectuais italianos, Gramsci não é, no entanto, anticatólico. Venera, de longe, a Igreja à qual não pertence. Pretende aproveitar a milenar experiência moral da instituição de Roma. Exige que os comunistas preservem a disciplina intelectual e moral de um clero. É assim que ele entende o Partido.
O escrito básico de Gramsci, a esse respeito, é sua interpretação originalíssima de Maquiavel. O fascismo vitorioso tinha proclamado o “Duce” como reencarnação do “Príncipe”; e todo mundo, dentro e fora da Itália, tinha concordado, acostumado como se estava a ver no secretário florentino o pai do amoralismo político. Gramsci, devolvendo a Maquiavel o papel de fundador do pensamento político moderno, tinha, antes de tudo, de destruir aquela identificação. Embora reconhecendo, com Croce, o papel dos grandes espíritos individuais na História, nega a possibilidade e a necessidade de um Príncipe individual nos tempos modernos. O Príncipe de hoje é um coletivo: é o partido de vanguarda política, é o partido comunista, liderando e dirigindo o povo.
Nessa altura, Gramsci parece leninista dos mais ortodoxos. Mas leninista, sim, e não stalinista. Citando trechos menos citados do pensador-revolucionário russo, Gramsci rejeita ou parece rejeitar a ditadura do proletariado, admitindo apenas a hegemonia do proletariado numa fase de transição (ver Fabrizio Onofri, ex-membro do Comitê Central do PCI, em seu artigo “La via sovietica alla conquista del potere e la via italiana aperta da Gramsci”, Nuovi Argomenti , 23/24, 1957). Este Gramsci é o pai do comunismo libertárioe da democracia operaia , o fundador dos consigli di fabbrica , que estavam destinados a ocupar, explorar e administrar as empresas industriais. A esse respeito é Gramsci o precursor da organização industrial hoje em vigor na Iugoslávia, começo de uma evolução que ainda não terminou. É bem possível que esse “revisionismo” de Gramsci se transforme mesmo em “ortodoxia”. E o mesmo vale quanto às atitudes democráticas de Gramsci dentro do seu partido e dentro da III Internacional de então.
A publicação dos respectivos documentos é de data recente. Só em 1964 permitiu Togliatti a publicação ( L´Unità , 30/05/64) da carta de Gramsci, datada de 15 de outrubro de 1926, dirigida “aos camaradas russos”, na qual advertiu contra a supressão da oposição trabalhista dentro do partido russo. Mas os iniciados sabiam, há anos, dessa atitude de Gramsci. Já em 15 de março de 1956 tinha Togliatti veladamente aludido a ela, acrescentando: “A procura de um caminho italiano para o socialismo foi nossa preocupação permanente. Creio poder afirmar que essa preocupação também foi a de Gramsci, que em seus atos políticos e essencialmente no pensamento da última parte de sua vida estava ocupado em tirar dos ensinamentos da revolução russa as conclusões de uma versão italiana dela”. Caminho italiano para o socialismo, caminho francês para o socialismo, etc., etc., essas atitudes também foram ontem “revisionistas” e passam hoje por “ortodoxas”. O pensamento de Gramsci está hoje mais vivo que no momento da morte do seu corpo. A vida de Gramsci continua.
Gramsci como mentor do “caminho italiano para o socialismo” parece confirmar aquilo que poderíamos chamar de “italianismo essencial de Gramsci”. Sua vida e seu pensamento só são compreensíveis como parte de determinada fase da evolução política, social e cultural da Itália; suas idéias continuam idéias de Croce, embora invertendo-as; italianos são todos os seus pontos de referência, a começar com Maquiavel. O italianismo de Gramsci culmina em sua crítica dos intelectuais italianos, da intelligentsia italiana, pois são fenômenos, estes, diferentes em qualquer uma das nações modernas, dependentes da história, da evolução social, da evolução literária e até da formação da língua. Não seria possível aplicar à intelligentsia francesa ou russa ou espanhola as lições tiradas das experiências históricas, muito diferentes, da intelligentsia italiana. No entanto, justamente através do italianismo fundamental de Gramsci revela-se seu universalismo.
O respectivo livro de Gramsci, Gli intellettuali e l´organizzazione della cultura , censura nos intelectuais italianos o cosmopolitismo e a falta de relações com o povo. Lembra o fato de que toda a maravilhosa literatura italiana, Dante, Petrarca, Boccaccio, os humanistas, Ariosto, Tasso, Parini, Goldoni, Alfieri, Foscolo, Leopardi, Manzoni, Carducci, foi feita por uma pequena classe de letrados para ser lida por pequena classe de amadores; ainda por volta de 1880, 20 anos depois da unificação política da Itália pelo Risorgimento , que passava por movimento democrático, 80% da nação italiana eram de analfabetos, excluídos da política e da cultura do país; e essa “desnacionalização” agravou-se no século XIX pelo afrancesamento das classes cultas da península.
A propósito das críticas de Gramsci à interpretação fatalista-passiva do marxismo em tempos de opressão e perseguição e a propósito da resistência inquebrantável de preso contra a tirania armada, tocou-nos a atualidade surpreendente e dolorosa, hic et nunc , dessa vida exemplar. Não é menor a atualidade, aqui e agora, da sua crítica a umaintelligentsia cosmopolita (antes afrancesada e agora, muitas vezes, americanizada), sem relações com a maioria analfabeta de nação. Um dos pensamentos mais italianos de Gramsci revela sua validade universal.
O próprio Gramsci indica as causas desse universalismo: pois o caráter cosmopolita daintelligentsia italiana é herança do universalismo católico medieval — Roma como Capital supranacional da Europa, do mundo de então — e do caráter supranacional do humanismo italiano. O catolicismo de rotina e o humanismo formalista das nações da América Latina participam da mesma herança; e por isso o pensamento especificamente italiano de Gramsci também vale aqui e agora, assim como seu exemplo de resistência.
Na solidão do cárcere descobriu Gramsci a índole ilusória da muito exaltada “independência do intelectual” de tipo tradicionalista. Exigiu a formação de um novo tipo de intelectual, técnico e científico, capaz de organizar o trabalho e a classe que trabalha; mas, advertindo seriamente contra o especialismo e o especialista que é bárbaro em tudo fora de sua especialidade e incapaz de desempenhar verdadeira atividade dirigente, revela Gramsci novamente o humanismo crociano no fundo do seu pensamento marxista.
Enfim, a variedade das interpretações do marxismo de Gramsci baseia-se na evolução dialética do pensamento do próprio Gramsci, no qual descobrimos várias camadas: o comunismo “libertário”-democrático dos consigli di fabbrica , o ortodoxo “comunismo de Partido” do escrito sobre Maquiavel; e, enfim, a idéia revolucionária de uma aliança libertadora dos operários industriais do Norte da Itália com as massas rurais do Sul subdesenvolvido da península. Essa última idéia parece, mais uma vez, especificamente italiana, nascida de circunstâncias históricas. No entanto, mais uma vez, o italianismo de Gramsci se revela como de validade universal.
La questione meridionale , a “questão do Sul”, é o permanente problema político-social da Itália. Do país da mais antiga civilização na Europa toda, agora também economicamente bem desenvolvido, desse país a parte mais populosa, o Sul, continua entregue aos males do latifúndio feudal, do pauperismo, da miséria, do analfabetismo, das superstições populares, da mortalidade infantil. Não é exagero afirmar que as melhores cabeças políticas dos últimos cem anos — e a Itália é a terra de promissão da ciência política — se têm dedicado ao trabalho de estudar as causas do problema e de propor remédio da doença. Gramsci escreveu sua Questione meridionale em 1926, às vésperas de ser preso pelos fascistas, completando o trabalho na prisão. Só não foi possível a publicação na Itália. Em 1930, uma revista de exilados políticos em Paris publicou o escrito que, tratando de problema especificamente italiano, não encontrou repercussão na Europa e ficou praticamente despercebido, enterrado como seu autor. Mas a roda da História deu uma volta: e depois da queda do fascismo, em fevereiro de 1945, a pequena obra-prima foi republicada na revista Rinascita : desde então, continua sendo guia de todos os que pretendem resolver radicalmente e para sempre a “questão do Sul”. Qual é a solução? Muitos já têm denunciado as condições climáticas e a aridez da terra. Também denunciaram o pecado capital da democracia italiana, de ter abusado das massas humanas do Sul para, por meio de eleições fraudulentas, conseguir Parlamentos dóceis em Roma, que votaram tudo menos a modificação das condições de vida no Sul. Mas a destruição do regime parlamentar pelo fascismo tampouco modificou coisa alguma. E Gramsci previu bem que o restabelecimento da democracia formal (acontecido, depois, em 1945) tampouco modificaria as coisas. A chamada reforma agrária, desde então empreendida, limita-se a melhorar as condições físicas, a irrigação, o adubamento, etc., desmentindo pelo menos o fatalismo daqueles que acreditavam na inevitabilidade da miséria produzida pela aridez da terra e pelo desfavorável regime de chuvas. Gramsci, porém, responsabilizou pelaquestione meridionale o formalismo da democracia do Risorgimento , que deu aos sulinos o voto sem dar-lhes a terra, isto é, a independência econômica do voto. E propõe a democratização do Sul pela radical reforma agrária, que as populações rurais conseguiriam pela aliança com o operariado industrial nortista.
Pela terceira vez atinge-nos a atualidade do pensamento gramsciano; e seu universalismo, válido para toda a gente fora da Itália. A primeira vez foi o exemplo da resistência contra a ditadura terrorista. A segunda vez: a alienação da intelligentsia e a necessidade de sua reconstrução em bases nacionais. Agora, na terceira vez, pensamos no latifúndio, na miséria, na democracia formal e na necessidade de uma radical reforma agrária, reconhecendo: aquilo que na Itália é o Sul, isto é, exatamente, no Brasil o Nordeste.
Um dos argumentos ou pseudo-argumentos mais usados pelos adversários de reformas sociais é a alegada necessidade maior de realizar uma reforma moral da sociedade. Em vez da reforma agrária levantam a falsa bandeira da luta contra a corrupção. Depois de extirpada a corrupção, eles realizariam o milagre de reformar tudo sem tocar no regime social vigente. Exigem, antes, a reforma moral porque a sabem inviável ou porque, desprezando as possibilidades do homem, a acreditam inviável. A esse pseudomoralismo opõe Gramsci o exemplo da sua vida. Um exemplo irrespondível de reforma moral e verdadeira.
4. As obras escritas por Gramsci no cárcere só podiam ser publicadas depois de 1945. O primeiro volume que saiu compreende as 218 cartas que o preso escreveu entre 1926 e 1936 a membros de sua família: à mãe; aos filhos que viviam em Moscou com a mulher do preso, física e mentalmente quebrada; e, sobretudo, à cunhada Tatiana, a pessoa lá fora no mundo que melhor o compreendeu. Escritos sob a censura das autoridades da Penitenciária, as Lettere dal cárcere falam pouco ou nada de política. Destinam-se, sobretudo, à luta contra a solidão dentro das quatro paredes; à luta contra o progressivo enfraquecimento físico, e, sobretudo, à luta pela sobrevivência espiritual: separado dos seus para sempre, o encarcerado não quer ficar esquecidos por eles. Por isso, se dirige Gramsci, nesse grande documento humano e obra-prima da literatura italiana, com preferência a seus filhos nos quais espera sobreviver. Nessas cartas aos filhos não se percebe o menor traço de sofrimento, de impaciência, mas uma maravilhosa adaptação ao espírito infantil: no entanto, muitas vezes, as palavras têm duplo sentido, escondendo atrás dos conselhos paternais, acessíveis à compreensão das crianças, confissões de auto-introspecção do preso e propósitos dele para seu próprio futuro, tão limitado. Penosamente, o epistológrafo procura reconstruir as caras, as vozes que ele já quase esqueceu. Lembra-se para não ficar esquecido e não esquecer, é seu grande esforço. Atrás da família surgem recordações de sua própria infância na Sardenha, inspiradas pelo profundo amor cristão desse materialista aos pobres da sua terra. O estilo rigorosamente sóbrio das Lettere dal cárcere não dissimula a emoção de quem as escreve. Pela emotividade procura Gramsci superar o intelectualismo seco que ele próprio censurara nos seus pares, nos intelectuais; e procura fortalecer-se para o trabalho intelectual em circunstâncias monstruosamente difíceis.
“Eu sei”, diz Gramsci, “que bater com a cabeça contra o muro não destrói o muro, mas a cabeça”. Não desespera. Mas escreve. Escreve furiosamente, cadernos, cadernos e mais cadernos, que foram, depois de 1945, coligidos e ordenados pelos seus testamenteiros e publicados pela Editora Einaudi: O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce; o escrito sobre Maquiavel; Os intelectuais e a organização da cultura ; Literatura e vida nacional ; um comentário sobre o Canto X do Inferno de Dante; um estudo sobre Pirandello; e a versão definitiva da Questione meridionale . É um output admirável. Escrevendo e escrevendo, o mortalmente doente sempre repete em suas cartas: “Sto bene, sto bene”. “Sinto-me muito bem”, porque o tirano não conseguiu realizar a promessa do promotor, de “inutilizar por 20 anos esse cérebro”. A morte prematura foi a coroa do martírio. Mas a cova debaixo da campa fascista ficou vazia. O espírito ressurgiu.
“O espírito está disposto, mas a carne é fraca”, diz São Paulo. Vida, martírio e morte de Antonio Gramsci desmentem vigorosamente esta frase, mas confirmam outras palavras do apóstolo: “A fé, o amor e a esperança, esses três ficam, mas o amor é o maior entre eles”. Grande foi, realmente, o amor de Antonio Gramsci a seu povo sofredor e maltratado. Maior foi, porém, em seu caso, a fé que consegue transferir montanhas e que para Gramsci abriu, espiritualmente, os muros da prisão. Mas a maior das virtudes suas foi a Esperança. Pensamos: em 1926, quando Gramsci escreveu La questione meridionale, o preso já não podia publicá-la; em 1930, quando em Paris se publicou o escrito, só poucos o leram; e em 1937, quando Gramsci morreu, seu pensamento parecia enterrado com ele na terra italiana, dominada talvez para sempre pela tirania fascista, baseada em exército, polícia, hordas inumeráveis de milicianos armados, justiça especial, dinheiro da grande burguesia, apoio do latifúndio, ajuda de potências estrangeiras e apatia do povo exausto. Mas só poucos anos depois caiu como um castelo de cartas todo esse edifício da tirania e o sintoma externo dessa queda foi, em 1945, a segunda publicação da Questione meridionale numa revista editada na Via delle Botteghe Oscure, em pleno coração da Roma libertada.
Mesmo no escuro da prisão que parece perpétua e é efêmera, a esperança não morre e “é a maior das três”. Eis a vida de Antonio Gramsci.
Otto Maria Carpeaux , Revista Civilização Brasileira , 7/05/1966.
Fonte: Gramsci e o Brasil – 1997Brasil.

Sem dúvida nenhuma, o preconceito e o sectarismo estão por trás desse injustificável desconhecimento. Na década de 1990 a estes dois aspectos se juntou outro: a crise da perspectiva revolucionária e a capitulação de vários intelectuais e organizações do campo da luta pelo socialismo. Hoje, mais do que nunca, é necessário resgatar a história e as contribuições teóricas de homens como Lênin e Gramsci. Somente assim poderemos construir alternativas viáveis para a crise do socialismo e para a teoria que lhe serviu de suporte durante todo o século XX: o marxismo.
A infância e a adolescência na Sardenha
Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891 numa pequena cidade na ilha da Sardenha – uma das regiões mais pobres da Itália. Sua infância foi marcada pelo infortúnio. Logo nos primeiros anos de vida desenvolveu uma deficiência física que o impediu de crescer normalmente.
Outra tragédia atingiu a família do pequeno Gramsci. Seu pai, gerente do cartório local, foi preso e acusado de roubo. O caso tratou-se de uma vingança política de seus adversários. A prisão colocou a família em uma situação de penúria. Em 1903 Gramsci, que fora aprovado no exame de admissão no ginásio, não pôde cursá-lo e foi obrigado a trabalhar numa repartição pública na qual passava dez horas por dia carregando pastas de processos volumosos. Um trabalho que agravou seu problema físico e de saúde. Tinha na ocasião apenas 12 anos de idade.
Dois anos depois seguiu para o ginásio na pequena cidade de Santu Lussurgiu, onde viveu na casa de uma família de camponeses pobres. Ali teve contato, pela primeira vez, com as ideias socialistas. Seu irmão mais velho que trabalhava em Turim – um importante centro industrial da Itália – enviava-lhe esporadicamente o jornal do Partido Socialista Italiano, o Avante!. Depois se mudou para Cagliari, capital da Sardenha, onde passou a morar com seu irmão que havia voltado para trabalhar na Câmara do Trabalho, uma espécie de organização sindical. Os dois passaram a frequentar as reuniões de operários socialistas.
A forte influência do ambiente já podia ser sentida em suas redações escolares. Aos 19 anos escreveu: "A Revolução Francesa abateu muitos privilégios, despertou oprimidos; não fez mais do que substituir uma classe por outra no domínio. Deixou, contudo, uma grande lição: que os privilégios sociais, sendo produtos da sociedade e não da natureza, podem ser superados. A humanidade necessita de outro banho de sangue para cancelar muitas dessas injustiças".
Gramsci em Turim Vermelha
Em 1911, graças a uma bolsa de estudos, ingressou na Universidade de Turim para fazer o curso de Letras. Na academia entrou em contato com a filosofia de Benedetto Croce e Giovanni Gentile, filósofos idealistas (neo-hegelianos) e adversários do positivismo dominante nos meios intelectuais progressistas da Itália do norte. A influência hegeliana podia ser sentida nos trabalhos do jovem Gramsci entre 1914 e 1917. Num artigo, publicado em 1914, afirmou: "Os revolucionários (...) concebem a história como criação do próprio espírito".
O idealismo, antipositivista, se traduziu também no famoso artigo sobre a revolução socialista na Rússia. Segundo ele a Revolução Bolchevique era “cimentada mais por ideologia que por fatos”. Ela havia sido uma “revolução contra O Capital de Karl Marx”. Continua ele: “O Capitalde Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental (...). Os fatos superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos segundo os quais a história da Rússia deveria desenvolver-se conforme os cânones do materialismo-histórico (...), se os bolcheviques renegam algumas afirmações de Marx de O Capital, não renegam seu pensamento imanente, vivificador. Eles não são 'marxistas', eis tudo (...). Vivem o pensamento marxista que não morre nunca, pois é a continuação do pensamento idealista italiano e alemão, os quais em Marx se haviam contaminado de incrustações positivistas e naturalistas".
Na universidade conheceu os jovens socialistas Palmiro Togliatti, também da Sardenha, e Antonio Tasca. Este último era militante da juventude socialista. Através dele Gramsci e Togliatti entraram em contato com os círculos socialistas turinenses e com o movimento operário mais avançado da Itália. Seu primeiro artigo político foi "Neutralidade ativa e operante", escrito em outubro de 1914, no qual defendeu uma posição que o aproximava dos socialistas que defendiam a guerra. Postura que rapidamente abandonou, mas pela qual pagou caro nos anos seguintes.
Em 1915, Gramsci abandonou a universidade e se tornou redator do jornal socialista O Grito do Povo e responsável por uma coluna na página turinense do Avante!, órgão oficial do PSI. Dois anos depois lançou a revista A Cidade Futura. Neste momento sua grande preocupação era construir uma cultura e uma moral socialista na classe operária e concentrava todas as suas forças neste objetivo.
No mesmo rumo propôs a criação de uma Associação Socialista da Cultura. Tanto os reformistas como os maximalistas (radicais) recusaram a proposta, considerada idealista. No mesmo ano criou o Clube da Vida Moral, onde se debatiam temas culturais e filosóficos. Para ele a questão da construção de uma nova moral (socialista) entre os trabalhadores era central, e a própria conquista do socialismo passava por ela. A deficiência física o livrou do alistamento militar, mas a maior parte dos jovens socialistas, propositalmente, foi convocada e o Clube fechou suas portas.
Em 13 de agosto de 1917 Turim realizou um grande ato público de apoio à Revolução Russa e aos bolcheviques. A data coincidiu com a chegada de dois membros do governo de Kerensky. A multidão nas ruas gritava: Viva Lênin!
Uma semana depois eclodiu uma greve geral pelo pão. Rapidamente ela se transformou numa insurreição operária. Ergueram-se barricadas e ouviu-se o grito "façamos como na Rússia!". Cinquenta operários morreram e cerca de duzentos ficaram feridos. Turim foi declarada zona de guerra. A prisão de quase todos os membros da seção turinense do PSI levou Gramsci, pela primeira vez, a assumir uma função na direção partidária. No entanto, Gramsci acabou sendo preso.
L'Ordine Nuovo e os Conselhos de Fábrica
Em abril de 1919 Gramsci e um grupo de jovens socialistas de esquerda lançaram o jornalL`Ordine Nuovo, que se intitulava "resenha semanal de cultura socialista". Os outros jovens eram Palmiro Togliatti, Ângelo Tasca e Umberto Terracini. Sob influência da radicalização da Revolução Russa, o jornal rompeu com a linha "culturalista" e lançou-se a uma ação nitidamente política. No final de julho saiu o artigo de Gramsci intitulado "Democracia Operária".
Escreveu ele: "As comissões internas (de fábrica) são órgãos da democracia operária e é preciso libertá-las das limitações impostas pelos empresários e infundir-lhes vida e energia novas. Hoje, as comissões internas limitam o poder do capitalista na fábrica e desempenham funções de arbitragem e disciplina. Desenvolvidas e enriquecidas, deverão ser amanhã os órgãos do poder proletário que substituirão o capitalista em todas as suas funções úteis de direção e administração".
O grande objetivo dos redatores do L'Ordine Nuovo era elaborar uma estratégia compatível com a realidade italiana, que possibilitasse ao proletariado conquistar e manter o poder político. Mas para realizar tal objetivo era preciso responder a uma pergunta crucial: "Existiria na Itália (...) um germe, um projeto, um esboço de sovietes?".
A resposta de Gramsci era que sim. E este germe eram as comissões internas de fábricas. Mas era preciso mudar o seu caráter. Elas deveriam deixar de ser meros aparelhos dos sindicatos burocratizados, eleitas diretamente pelo conjunto dos trabalhadores, independentemente de serem ou não sindicalizados. Deveriam ter representação de todas as profissões: operários, empregados e técnicos. Assim, as comissões de fábrica se transformariam em verdadeiros Conselhos de Fábricas, embriões dos sovietes.
Em outro artigo, "Sindicatos e conselhos", publicado em outubro de 1919, ele criticou os sindicatos italianos, dirigidos pelos socialistas. "Os operários”, escreveu ele, “sentem que o conjunto da organização deles tornou-se um aparelho tão gigantesco que terminou por obedecer às leis próprias imanentes a sua estrutura e ao seu complicado funcionamento, mas estranhas à massa que adquiriu consciência de sua missão histórica de classe revolucionária (...) Sentem que, mesmo na casa deles, na casa que construíram com tenacidade, com esforços pacientes, cimentando-a com sangue e lágrimas, a máquina esmaga o homem e o funcionalismo esteriliza o espírito criador (...). Os sindicatos profissionais (...) são o tipo de organização proletária específico do período histórico dominado pelo capital. Num sentido pode-se afirmar que eles são partes integrantes da sociedade capitalista (...), os operários (...) tornam-se comerciantes da sua única propriedade, a força de trabalho e a inteligência profissional".
Em outubro de 1919, apesar da resistência da ala reformista do PS e da direção da CGT, mais de 50 mil operários elegeram diretamente suas comissões de fábrica; em 1920 esse número subiu para mais de 150 mil – somente em Turim. Entre 1919 e 1920 o movimento atingiu o seu auge. No mês de abril de 1920, diante da uma medida governamental que alterava a jornada de trabalho, os metalúrgicos de Turim ameaçaram deflagrar uma greve geral. Os patrões, tendo em vista enfraquecer os conselhos, ameaçaram fechar as fábricas e demitiram vários dirigentes operários. Olivetti, secretário-geral da Confederação das Indústrias, afirmou: "Não é possível que nas fábricas se constitua um organismo que se proponha a decidir à margem e sobre os órgãos diretivos da fábrica".
Os operários não se intimidaram e responderam com uma greve. Ela ficou conhecida como "greve dos ponteiros" e se transformou numa greve geral em Turim – em seguida se estendeu por toda a região do Piemonte, atingindo mais de 500 mil trabalhadores. As direções reformistas da CGT e do PSI recusaram-se a publicar os manifestos dos grevistas e buscaram de todas as maneiras fazer com que a greve não se estendesse para outras regiões. A própria convenção do PSI, marcada para Turim, foi transferida para Milão – buscou-se, assim, evitar a pressão dos operários em luta sobre os delegados.
Aproveitando o isolamento dos operários, os patrões partiram para a ofensiva e endureceram o jogo. Os trabalhadores foram obrigados a voltar ao trabalho. Afirmou Gramsci: "Abandonado por todos, o proletariado turinenese foi obrigado a enfrentar sozinho, com suas próprias forças, o capitalismo e o poder do Estado burguês (...). A intervenção enérgica de centrais sindicais poderia equilibrar as forças se não determinar a vitória", e concluiu: "regressam os operários às fábricas com a convicção de não terem triunfado, mas também não terem sido dominados".
Apesar da derrota e da repressão patronal que se seguiu, os operários conseguiram manter sua organização dentro das fábricas. A "Torino Rossa" continuava sendo uma ameaça constante à burguesia italiana. Era preciso quebrar a espinha dorsal da organização dos trabalhadores, era preciso destruir as comissões de fábrica.
Em junho, a Federação Italiana dos Operários Metalúrgicos (FIOM) apresentou novamente aos industriais suas reivindicações. Os patrões recusaram-se a atender a maior parte delas. Em algumas fábricas os trabalhadores começaram um lento processo de obstrução da produção. Os industriais, organizados na Federação das Indústrias, suspenderam as negociações. A FIOM decidiu-se, então, pelo desencadeamento de um processo de obstrução da produção por toda a Itália. A Federação das indústrias ordenou o fechamento de todas as fábricas, iniciativa que já vinha sendo tomada por alguns industriais isoladamente. Ao lockout patronal os operários responderam com uma nova tática, a ocupação das fábricas. Em Turim mais de 140 empresas foram ocupadas. Os operários passaram a organizar a produção, estabelecendo a autogestão. O movimento pouco a pouco foi adquirindo um caráter insurrecional. Mais de 500 mil operários participaram da luta.
A classe operária mostrou, na prática, que a burguesia era uma classe socialmente desnecessária para o desenvolvimento do processo produtivo. Os próprios trabalhadores poderiam organizar a produção sem patrões ou capatazes.
Os industriais pressionaram o governo para que assumisse posições mais duras contra os operários e não permitisse que as mercadorias que vinham sendo produzidas nas fábricas ocupadas pudessem ser comercializadas. Os empresários lançaram um ultimato ao governo, afirmando que "a retração das autoridades tolhe qualquer fé nos defensores das presentes instituições", levantaram dúvidas sobre "a capacidade do governo de garantir as liberdades constitucionais" e, por fim, ameaçaram suprir com "suas próprias iniciativas aquela defesa que lhes era recusada".
O governo, por sua vez, percebeu que não era possível se opor abertamente a um movimento daquela proporção. O próprio Giolitti, primeiro-ministro, respondeu aos industriais enfurecidos: "Como poderia o governo impedir a ocupação das fábricas? Trata-se de 600 manufaturas e indústrias metalúrgicas. Para impedir essas ocupações deveria ter colocada uma guarnição em cada um destes estabelecimentos, nas pequenas uma centena de homens, nas grandes alguns milhares. Teria empregado, para ocupar as fábricas, toda força de que poderia dispor. E quem vigiaria os 500 mil operários que ficariam para fora das fábricas?". O governo preferia usar outra tática e confiar nas direções reformistas do PSI e da CGT, uma posição que se mostraria acertada.
A FIOM, buscando romper com o isolamento que lhe era imposto, ofereceu a direção do movimento à CGT, que por maioria decidiu que a luta deveria se reduzir ao campo das reivindicações meramente econômicas e sindicais. A proposta de estender a greve para todas as categorias do país foi rejeitada.
O governo aproveitou a oportunidade e convidou as partes para negociar o fim do movimento; os patrões cederam em alguns pontos, concordaram com a concessão de um pequeno aumento salarial a título de indenização pela carestia e ampliação do direito de férias. A CGT e a FIOM decidiram aceitar a contraproposta patronal e defenderam o fim das ocupações. Em Turim a resistência durou ainda mais alguns dias.
A burguesia não estava contente com o resultado, ela havia concedido mais do que desejava. Fortalecia dentro dela a convicção de que era preciso pôr fim à experiência dos conselhos de fábrica. Entre 1921 e 1922, as principais lideranças foram demitidas e incluídas nas "listas negras". Mais de 31 mil operários também perderam seus empregos em Turim. Mas a derrota final só veio mesmo com a ascensão e consolidação do fascismo na Itália. O secretário da Confindústria enfatizou: "Durante a hora de trabalho, trabalha-se e não se discute. Na fábrica só pode existir uma autoridade. O poder da fábrica deve pertencer ao empresário".
Os limites teóricos de L'Ordine Nuovo
As propostas apresentadas por L'Ordine Nuovo foram atacadas pela direita socialista, acusadas de serem uma vertente do "sindicalismo revolucionário". Contraditoriamente houve críticas provindas da ala esquerda do partido. O principal expoente deste grupo, Amadeo Bordiga, acusou as teses de Gramsci de serem no fundo reformistas, uma concessão às opiniões sindicalistas.
As críticas de Bordiga, embora possuíssem um viés esquerdista, acertava pelo menos em três pontos essenciais. O primeiro era a constatação de que haveria uma subestimação do papel do Partido Comunista no processo de transformação revolucionário; o segundo, a supervalorização da experiência dos Conselhos de Fábrica, na ilusão de que seria possível um controle operário da produção nos marcos do domínio político da burguesia. O terceiro, o de compreender o espaço da fábrica como "território nacional da classe operária", caindo assim em um desvio economicista e corporativista. O território da classe operária só poderia ser o território abarcado pelo conjunto da nação.
Gramsci chegou a afirmar: "A organização por fábricas forma a classe (toda a classe) em uma unidade homogênea e coesa que adere plasticamente ao processo industrial de produção e o domina, para dele se apossar definitivamente. Na organização por fábricas, portanto, encarna-se a ditadura proletária". Para Bordiga, sem a direção do partido de vanguarda, as comissões de empresa poderiam se tornar um eficiente meio de dominação do reformismo sobre a classe operária, como vinha ocorrendo em vários países europeus.
Seria um erro, segundo ele, acreditar que "o proletariado pudesse se emancipar ganhando terreno nas relações econômicas, enquanto o capitalismo ainda detém, com o Estado, o poder político". Continuou: "Quando ainda vigora a dominação do Estado burguês, o Conselho de Fábrica nada controla (...). Concluímos: não somos contrários à constituição dos conselhos (...). Mas afirmamos que a atividade do Partido Comunista deve alicerçar-se sobre outra base: sobre a luta pela conquista do poder político (...). Enquanto o poder político ainda se acha nas mãos da classe capitalista, uma representação dos interesses revolucionários comuns do proletariado não pode ser obtida a não ser no terreno político (...)".
A essas mesmas conclusões chegariam os comunistas de L' Ordine Nuovo. Ainda no meio dos acontecimentos de 1920, eles iniciaram um balanço autocrítico dos erros cometidos pela direção do movimento de ocupações das fábricas. "Os operários turinenses”, afirmou Gramsci, “compreenderam que não basta invadir as fábricas e nelas hastear a bandeira vermelha para fazer a revolução, sabem que a conquista das fábricas não pode substituir a luta pela conquista do poder político (...), mas os operários turinenses compreenderam e sabem estas verdades porque conquistaram tais verdades experimentalmente através das discussões e da prática dos conselhos de fábrica". A partir deste momento Gramsci se jogaria de corpo e alma na tarefa de organizar o Partido Comunista da Itália e colocá-lo à altura das grandes tarefas da revolução democrática e socialista na Itália.
A constituição do Partido Comunista
Em 1919 Bordiga organizou uma fração comunista no interior do Partido Socialista Italiano. Ela tinha ramificações por todo o país. O centro irradiador de suas ideias era o jornal Il Soviet, editado em Nápoles. O grupo de Bordiga se intitulou "maximalista abstencionista", por sua rejeição à participação em eleições. A corrente comunista de Bordiga possuía uma linha política esquerdista. Suas fundamentações teóricas, contraditoriamente, eram as mesmas da direita social-democrata: o positivismo e o economicismo. A partir delas fez uma avaliação fatalista da crise do capitalismo e da vitória iminente do socialismo. O resultado foi o predomínio do doutrinarismo e do imobilismo político.
Bordiga e seu grupo eram avessos a construir uma corrente comunista de massas. Sua concepção de partido era de um pequeno agrupamento de revolucionários puros que não se contaminasse quer pelas lutas cotidianas quer pela ação político-institucional – e estivesse preparado para o grande dia da ruptura que chegaria pela própria dinâmica (espontânea) do desenvolvimento capitalista.
No Congresso do Partido Socialista em Livorno, realizado em 1921, as frações comunistas obtiveram 58.783 votos, a fração reformista de Turati apenas 14.685. No entanto, a fração centro-esquerda de Serrati conquistou 98.028 votos – esta se denominava "comunista unitária" e defendia o ingresso na Internacional Comunista (IC), mas era contra a expulsão da ala direita como exigia a direção desta organização.
Em 21 de janeiro os delegados da fração comunista, hegemonizados por Bordiga, se retiraram do plenário e fundaram o Partido Comunista da Itália (PCI). No comitê central de quinze membros, apenas dois eram ligados ao L' Ordine Nuovo: Gramsci e Terracini. Este jornal passou a ser o órgão central do novo Partido e Gramsci continuou sendo seu diretor-responsável. A linha esquerdista era amplamente hegemônica no novo partido. A primeira grande polêmica foi, justamente, quanto à participação nas eleições parlamentares que aconteceriam no mesmo ano. Bordiga era contra e Gramsci a favor. A intervenção da IC fez com que as posições abstencionistas fossem derrotadas.
Nenhum membro de L'Ordine Nuovo participou do segundo congresso da III Internacional. Mas, Lênin fez referências positivas às posições de Gramsci e seu grupo. Afirmou ele: "considero substancialmente justas as críticas e as propostas práticas, publicadas (...) em nome da seção turinense do próprio partido, na revista L'Ordine Nuovo (...) que correspondem plenamente a todos os princípios fundamentais da III Internacional".
As teses do segundo congresso do PCI, realizado na cidade de Roma em 1922, foram abertamente criticadas pela direção da Internacional como de natureza esquerdista. Em plena ofensiva fascista elas previam uma "fase social-democrata", que representaria a completa desmoralização do Partido Socialista e a ascensão do PCI. Elegiam a esquerda do PSI como alvo principal de seus ataques e se recusavam a entabular qualquer tipo de aliança com ele, inclusive com suas bases operárias. Neste congresso Gramsci foi eleito representante do partido junto à IC.
O terceiro congresso da IC, realizado em 1921, já havia levantado a palavra de ordem "frente única operária". Diante da ofensiva reacionária era preciso estabelecer alianças políticas entre comunistas e socialistas e mesmo constituir governos operário-camponeses. Ou seja, estabelecer objetivos intermediários que visavam a acumular forças para a conquista do socialismo. Bordiga recusou-se a aplicar essas resoluções – negou a justeza da tática de frente única com os socialistas e possibilidade de criação de governos operários.
A Internacional Comunista e a ascensão do fascismo
Em um artigo publicado em janeiro de 1921 Gramsci procurou, pela primeira vez, analisar as particularidades do movimento fascista italiano e identificar o que o diferenciava dos demais movimentos reacionários. Segundo ele, o fascismo possuía uma base de massa, sustentado na pequena burguesia urbana, que buscava recuperar espaço econômico e político perdido com a ascensão do capitalismo monopolista na Itália. No mesmo ano escreveu o artigo "Subversismo reacionário" que constatava que além de possuir uma base de massa destacava-se por não se prender à legalidade burguesa e, em certo sentido, negá-la. Para ele, o fascismo era a junção entre as massas pequeno-burguesas – impregnadas de um sentimento antioperário e antissocialista – e os agrupamentos reacionários ligados aos latifundiários no campo – mobilizados contra a possibilidade de uma revolução agrária no Sul.
Esses artigos ainda eram marcados pelo esquerdismo de inspiração bordiguiana. Era visível, por exemplo, a subestimação sobre a capacidade do fascismo de tomar o poder e uma excessiva crítica à social-democracia. Falava, inclusive, de uma possível fusão entre socialistas e fascistas e que "os socialistas se tornariam vanguarda da reação antiproletária". Tudo isto poucos meses antes da marcha fascista sobre Roma e sua ascensão ao poder.
Em maio de 1922 Gramsci chegou a Moscou, onde participou, pela primeira vez, da plenária da Executiva da IC. Ali as teses de Roma foram duramente criticadas e os comunistas italianos fizeram uma autocrítica superficial. O excesso de trabalho fez com que ele ficasse seriamente doente e fosse obrigado a se internar num sanatório soviético. Ali conheceu Júlia Schucht, que seria sua companheira por toda a vida.
No final de outubro de 1922, o PSI resolveu expulsar a sua ala direita e iniciou uma reaproximação com a IC. Os reformistas expulsos, comandados por Turati, fundaram o Partido Socialista Unificado. Bordiga buscou de toda maneira sabotar a tentativa de unificação entre a esquerda socialista e os comunistas. Somente em 1925, após sua derrota no interior do partido, Serrati e seu grupo, denominado terceirista, puderam ingressar nas fileiras do PCI.
Os esquerdistas, comandados por Bordiga, acreditavam que o governo fascista de Mussolini não passava de uma simples mudança de ministério. Gramsci num primeiro momento foi fiel à maioria esquerdista e defendeu a sua política junto à Internacional. O representante soviético Zinoviev culpou os comunistas italianos pelo fracasso da tentativa de unidade da esquerda e pela vitória do fascismo.
No entanto, em Moscou, Gramsci se pôs em total acordo com a tese de frente única operária e começou a articular a formação de um novo grupo dirigente para o PCI. Escreveu ele: "O camarada Lênin nos ensinou que, para vencer nosso inimigo de classe – que é poderoso, que tem muitas reservas à sua disposição –, devemos aproveitar qualquer rusga em seu seio e devemos utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, vacilante e provisório. Ele nos ensinou que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o fim estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação do seu território, sem ter atingido antes uma serie de objetivos táticos tendentes a desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto".
Entre 1923 e 1924 conseguiu ganhar para suas posições seus velhos camaradas Togliatti e Terracini. Em 1924 a corrente dirigida por Gramsci venceu o congresso do PCI. O Partido entrava numa nova fase. Começava a deixar de ser um partido de poucos, mas bons – como pretendia Bordiga. Afirmou Gramsci: "Foi na última Conferência que o nosso Partido se colocou explicitamente, pela primeira vez, o problema de se tornar o partido das mais amplas massas italianas, de se tornar o partido que realiza a hegemonia do proletariado no amplo quadro de aliança entre a classe operária e as massas camponesas".
Gramsci passou a advogar a necessidade de utilizar palavras de ordem intermediárias que não fossem apenas um apelo vazio de constituição de sovietes e a conquista da Ditadura do Proletariado. "Não é certo e nem mesmo provável”, escreveu ele, “que a passagem do fascismo à ditadura do proletariado seja imediata". Levantou a palavra de ordem Assembleia Constituinte Republicana, ainda que sob bases de conselhos de operários e camponeses.
Neste período Gramsci foi eleito para assumir a direção do PCI e compor um novo núcleo dirigente, juntamente com Togliatti e outros companheiros de L'Ordine Nuovo. Não podendo regressar à Itália, onde tinha prisão decretada, foi para Viena. Em janeiro de 1924, com a finalidade de criar vínculos permanentes entre comunistas e socialistas, criou o jornal L'Unità. Um jornal de toda esquerda socialista. Um instrumento da frente única, proposta pela IC.
O PCI também conclamou a unidade dos partidos de esquerda tendo em vista as eleições de março de 1924. Bordiga, ainda a principal expressão popular do Partido, se recusou a ser candidato. Mesmo assim o resultado eleitoral acabou sendo favorável aos comunistas que elegeram 19 deputados, entre eles Gramsci que se encontrava no exterior. Agora, munido de imunidade parlamentar, ele podia voltar para a Itália e agir mais abertamente.
Em junho de 1924 eclodiu o "caso Matteoti". Um grupo de fascistas sequestrou e assassinou o renomado deputado socialista Giacomo Matteotti, que havia feito duras críticas ao governo fascista. Abriu-se uma crise política profunda. Os deputados oposicionistas, entre eles os comunistas, abandonaram o parlamento e se reuniram em outro lugar chamado Aventino. Realizaram-se manifestações massivas contra o assassinato. O regime de Mussolini chegou a balançar. Os comunistas propuseram a realização de uma greve geral, mas a proposta foi recusada. Apesar disso, no dia 27 de junho, 500 mil trabalhadores entraram em greve contra o fascismo.
A assembleia do Aventino se recusou a constituir-se em poder paralelo e convocar o povo, como propuseram os comunistas. Agravaram-se as divergências internas na oposição: os comunistas chamavam o grupo parlamentar liberal de "semifascista". Pouco a pouco a iniciativa política passou para as mãos dos fascistas.
Constatando as vacilações da oposição, Mussolini cassou os mandatos dos ausentes e transformou o parlamento mutilado em assembleia nacional constituinte. Pouco antes os comunistas haviam resolvido reassumir suas cadeiras na Câmara dos Deputados. Em tese isto os excluía do decreto que cassava os mandatos. Mas, os fascistas não respeitariam nem a sua própria legislação e destituiriam também os deputados comunistas.
Em agosto de 1924 Gramsci foi eleito para o recém-criado cargo de secretário-geral do PCI. Em setembro Bordiga foi eleito secretário-geral da federação comunista de Nápoles, fazendo dela uma trincheira contra a direção partidária. Neste mesmo ano nasceu o primeiro filho de Gramsci, Délio.
Em 16 de maio de 1926 Gramsci subiria pela última vez à tribuna da Câmara dos Deputados para denunciar a lei contra a maçonaria. Esta, segundo ele, seria apenas o começo de uma nova onda contra as organizações operárias. Neste dia enfrentou pessoalmente o próprio primeiro-ministro Benito Mussolini. Dirigindo-se a ele afirmou: "Vocês podem 'conquistar o Estado', podem modificar os códigos, podem procurar impedir a existência das organizações nas formas até então vigentes, mas vocês não podem prevalecer sobre as condições objetivas nas quais são obrigados a se movimentar (...). Em outras palavras, nós queremos declarar ao proletariado e às massas camponesas italianas, desta tribuna, que as forças revolucionárias italianas não se deixarão abater e que o seu turvo sonho (do fascismo) não conseguirá realizar-se".
A sua postura combativa no parlamento e o seu desafio ao próprio Duce colocou-o na mira dos agrupamentos fascistas. Por isto foi obrigado a entrar na clandestinidade, mas recusou-se a seguir o conselho dos membros da direção para que abandonasse o país.
Carta ao CC da URSS
Em meados da década de 1920 a direção do Partido Comunista da União Soviética estava envolvida numa grave luta interna. Os dois principais expoentes desta disputa eram Stálin e Trotsky. Gramsci se preocupava com o desfecho deste conflito e as consequências negativas para o movimento comunista internacional. Apesar dessa justa preocupação não deixou de expressar sua opinião, amplamente favorável à maioria, encabeçada por Stálin e Bukharin.
Numa carta ao Comitê Central do Partido bolchevique, datada de outubro de 1926, afirmou: "Declaramos agora que consideramos fundamentalmente justa a linha política da maioria do CC do PC da URSS e que neste sentido, com toda certeza, deverá se pronunciar a maioria do Partido italiano, se se tornar necessário, (...) nos impressiona o fato de que a atitude das oposições envolva toda a linha política do CC, atingindo o coração mesmo da doutrina leninista da ação política de nosso Partido na URSS. São colocados em discussão os princípios da hegemonia do proletariado; são prejudicadas e postas em perigo as relações fundamentais de aliança entre operários e camponeses, ou seja, os pilares do Estado operário e da revolução". Continuou: "É fácil fazer demagogia nesse terreno; é difícil deixar de fazê-la quando a questão foi posta nos termos do espírito corporativo e não nos termos do leninismo, da doutrina da hegemonia do proletariado (...). Na ideologia e na prática do bloco das oposições, renasce plenamente toda a tradição da social-democracia e do sindicalismo, que até agora impediu o proletariado de se organizar com classe dirigente".
Defendeu energicamente a necessidade da unidade e disciplina no interior do partido, especialmente na fase de transição representada pela NEP. Mas alertou que "a unidade e a disciplina, nesse caso, não podem ser mecânicas e impostas; devem ser leais e fruto da convicção, não a de um destacamento inimigo aprisionado ou cercado". E por fim afirmou: "gostaríamos de estar seguros de que a maioria do CC da URSS não tem pretensão de exagerar na vitória na luta e está disposta a evitar medidas excessivas". Devido a esta última frase Togliatti não entregou a carta oficialmente à direção do PCUS e sim informalmente a Bukharin. Isto desagradou profundamente Gramsci.
As Teses de Lion e Alguns temas da questão meridional
Às vésperas do novo congresso agravou-se a ação divisionista de Bordiga. Gramsci se viu obrigado a publicar uma coluna diária no L'Unità intitulada "Contra o divisionismo fracionista, pela férrea unidade do Partido". O III Congresso do PCI se realizou em janeiro de 1926 na cidade francesa de Lion. Ele representou a vitória definitiva de Gramsci sobre Bordiga. As teses da maioria receberam mais de 90% dos votos. Foi a primeira tentativa de uma interpretação marxista da realidade italiana e de construir uma tática e de uma estratégia revolucionária nacional.
Foi uma dura resposta ao esquerdismo de Bordiga e a sua resistência de estabelecer uma política de aliança com a social-democracia, inclusive com sua ala esquerda, e a constituição de um partido de massas.
Escreveu Gramsci: "O companheiro Lênin dera a fórmula lapidar do significado das cisões, na Itália, quando disse ao companheiro Serrati: 'Separem-se de Turati, e depois façam aliança com ele'. Como era indispensável e historicamente necessário, devíamos nos separar (...) do reformismo (...) depois disso tudo, e continuando a luta ideológica e organizada contra aquelas correntes, procurar fazer uma aliança contra a reação. Para os dirigentes do nosso partido, qualquer ação da Internacional dedicada a obter uma aproximação com esta linha aparecia como se fosse uma implícita negação da cisão de Livorno, como uma manifestação de arrependimento".
O congresso também reforçou a importância da aliança operária e camponesa. Escreveu Gramsci: "Faz-se necessário que o nosso partido se aproxime estreitamente do camponês meridional, que o no nosso partido destrua no operário industrial o preconceito nele inculcado pela propaganda burguesa, segundo o qual o Sul é uma bola de chumbo que se opõe aos grandes desenvolvimentos da economia nacional, destruindo também no camponês meridional o preconceito ainda mais perigoso de que o norte da Itália seja um único bloco de inimigos de classe".
Em setembro de 1926 Gramsci começou e escrever um de seus textos mais importantes, o artigo "Alguns temas da questão meridional". Este ficou inacabado devido à sua prisão. Nele, ele trata fundamentalmente do problema da construção da hegemonia operária. Escreveu: "O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante à medida que consegue criar um sistema de aliança de classe que permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora; o que significa, na Itália, (...) na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas". Continuou: "O proletariado, para ser capaz de governar como classe, deve se despojar de qualquer resíduo corporativo, de qualquer preconceito ou incrustação sindicalista (...). O metalúrgico, o marceneiro, o operário da construção civil etc. devem não só pensar como proletários e não mais como metalúrgicos, marceneiros etc., mas devem dar outro passo à frente: devem pensar como operários de uma classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe que só pode vencer e construir o socialismo se for ajudada e seguida pela grande maioria desses estratos sociais (...)".
Gramsci no cárcere
No início de novembro de 1926, o Conselho de Ministro tomou medidas que anularam as liberdades individuais, instituiu a pena de morte e o Tribunal Especial para julgar os crimes contra o Estado. A ditadura fascista fechou o cerco sobre a oposição. No dia 8 de novembro os comunistas ainda se reuniram para articular um protesto contra a votação do projeto que seria feito no dia seguinte durante a sessão da Câmara. No entanto, na mesma noite, Gramsci e demais deputados comunistas foram presos em suas próprias casas.
Depois de preso, Gramsci foi de prisão em prisão numa verdadeira via crucis. Seu julgamento foi marcado para 28 de maio de 1928 no Tribunal Especial para crimes contra o Estado. No julgamento, dirigindo-se aos juízes, afirmou: "Os senhores conduzirão a Itália à ruína: a nós comunistas caberá salvá-la". Em resposta, num duríssimo discurso acusatório, o promotor fascista afirmou: "É preciso impedir que este cérebro funcione durante 20 anos". No dia 4 de junho foi decretada a sentença: vinte anos, quatro meses e cinco dias de prisão.
Gramsci já estava há mais de um ano e meio preso e tinha agravado seu estado de saúde. Foi remetido à prisão de Turim. Em 8 de fevereiro de 1929, quase três anos após a prisão, começou a redigir seus Cadernos do Cárcere. Durante aproximadamente seis anos (até 1935) preencheu 33 cadernos escolares com uma letra miúda – equivalentes a 2.500 páginas de texto impresso. Escreveu sobre temas variados como linguística, crítica literária, história italiana, papel dos intelectuais e, principalmente, sobre teoria política (estratégia e tática no Oriente e Ocidente, concepção ampliada do Estado, hegemonia etc.). Ele conseguiu obter alguns livros, como as obras de Croce. Mas, não lhe foi permitido ter acesso aos livros de Marx, Engels, Lênin e aos documentos do movimento comunista internacional.
A doença se agravou na prisão. Em 7 de março de 1933 caiu desmaiado em sua cela. Diagnóstico: doença de Pott, lesões tuberculosas no lóbulo superior do pulmão, arteriosclerose, hipertensão arterial e gota. Havia perdido todos os dentes e quase dez quilos. Dores de cabeças, insônia e falta de apetite levaram-no a um estado-limite.
Em novembro daquele mesmo ano o governo autorizou sua transferência para uma clínica. Pela primeira vez se livrou da roupa de presidiário estampada com seu número de matrícula 7047. Duas dezenas de guardas vigiavam o perigoso paciente já moribundo. A situação continuou a se agravar. Agora tinha dificuldade para ler e escrever, mas ainda sonhava em voltar a ver sua terra natal, a Sardenha.
Finalmente, em 25 de abril de 1937 foi suspensa sua pena de prisão. Ele tinha agora 46 anos, cerca de dez passados em prisões fascistas. Estava livre, mas seu corpo e cérebro não mais respondiam. No mesmo dia de sua libertação caiu novamente e desta vez não se levantou mais. Em 27 de abril um derrame cerebral pôs fim à sua heroica vida.
Togliatti, ao saber da notícia, escreveu: "Gramsci foi assassinado do modo mais desumano, do modo mais bárbaro, do modo mais requintado e cruel. Dez anos durou a sua morte" e concluiu: "Com a sua morte desapareceu o primeiro bolchevique do movimento operário italiano".
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Bibliografia
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, L&PM, RS, 1981.
FIORI, Giuseppe. A vida de Antônio Gramsci, Paz e Terra, RJ, 1979.
LAJOLO, Laurana. Antônio Gramsci: Uma vida, Brasiliense, SP, 1982.
TOGLIATTI, Palmiro. Antônio Gramsci, Seara Nova, Lisboa, 1975
ACESSO EM 22/11/13
HORA:20:49
A infância e a adolescência na Sardenha
Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891 numa pequena cidade na ilha da Sardenha – uma das regiões mais pobres da Itália. Sua infância foi marcada pelo infortúnio. Logo nos primeiros anos de vida desenvolveu uma deficiência física que o impediu de crescer normalmente.
Outra tragédia atingiu a família do pequeno Gramsci. Seu pai, gerente do cartório local, foi preso e acusado de roubo. O caso tratou-se de uma vingança política de seus adversários. A prisão colocou a família em uma situação de penúria. Em 1903 Gramsci, que fora aprovado no exame de admissão no ginásio, não pôde cursá-lo e foi obrigado a trabalhar numa repartição pública na qual passava dez horas por dia carregando pastas de processos volumosos. Um trabalho que agravou seu problema físico e de saúde. Tinha na ocasião apenas 12 anos de idade.
Dois anos depois seguiu para o ginásio na pequena cidade de Santu Lussurgiu, onde viveu na casa de uma família de camponeses pobres. Ali teve contato, pela primeira vez, com as ideias socialistas. Seu irmão mais velho que trabalhava em Turim – um importante centro industrial da Itália – enviava-lhe esporadicamente o jornal do Partido Socialista Italiano, o Avante!. Depois se mudou para Cagliari, capital da Sardenha, onde passou a morar com seu irmão que havia voltado para trabalhar na Câmara do Trabalho, uma espécie de organização sindical. Os dois passaram a frequentar as reuniões de operários socialistas.
A forte influência do ambiente já podia ser sentida em suas redações escolares. Aos 19 anos escreveu: "A Revolução Francesa abateu muitos privilégios, despertou oprimidos; não fez mais do que substituir uma classe por outra no domínio. Deixou, contudo, uma grande lição: que os privilégios sociais, sendo produtos da sociedade e não da natureza, podem ser superados. A humanidade necessita de outro banho de sangue para cancelar muitas dessas injustiças".
Gramsci em Turim Vermelha
Em 1911, graças a uma bolsa de estudos, ingressou na Universidade de Turim para fazer o curso de Letras. Na academia entrou em contato com a filosofia de Benedetto Croce e Giovanni Gentile, filósofos idealistas (neo-hegelianos) e adversários do positivismo dominante nos meios intelectuais progressistas da Itália do norte. A influência hegeliana podia ser sentida nos trabalhos do jovem Gramsci entre 1914 e 1917. Num artigo, publicado em 1914, afirmou: "Os revolucionários (...) concebem a história como criação do próprio espírito".
O idealismo, antipositivista, se traduziu também no famoso artigo sobre a revolução socialista na Rússia. Segundo ele a Revolução Bolchevique era “cimentada mais por ideologia que por fatos”. Ela havia sido uma “revolução contra O Capital de Karl Marx”. Continua ele: “O Capitalde Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental (...). Os fatos superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos segundo os quais a história da Rússia deveria desenvolver-se conforme os cânones do materialismo-histórico (...), se os bolcheviques renegam algumas afirmações de Marx de O Capital, não renegam seu pensamento imanente, vivificador. Eles não são 'marxistas', eis tudo (...). Vivem o pensamento marxista que não morre nunca, pois é a continuação do pensamento idealista italiano e alemão, os quais em Marx se haviam contaminado de incrustações positivistas e naturalistas".
Na universidade conheceu os jovens socialistas Palmiro Togliatti, também da Sardenha, e Antonio Tasca. Este último era militante da juventude socialista. Através dele Gramsci e Togliatti entraram em contato com os círculos socialistas turinenses e com o movimento operário mais avançado da Itália. Seu primeiro artigo político foi "Neutralidade ativa e operante", escrito em outubro de 1914, no qual defendeu uma posição que o aproximava dos socialistas que defendiam a guerra. Postura que rapidamente abandonou, mas pela qual pagou caro nos anos seguintes.
Em 1915, Gramsci abandonou a universidade e se tornou redator do jornal socialista O Grito do Povo e responsável por uma coluna na página turinense do Avante!, órgão oficial do PSI. Dois anos depois lançou a revista A Cidade Futura. Neste momento sua grande preocupação era construir uma cultura e uma moral socialista na classe operária e concentrava todas as suas forças neste objetivo.
No mesmo rumo propôs a criação de uma Associação Socialista da Cultura. Tanto os reformistas como os maximalistas (radicais) recusaram a proposta, considerada idealista. No mesmo ano criou o Clube da Vida Moral, onde se debatiam temas culturais e filosóficos. Para ele a questão da construção de uma nova moral (socialista) entre os trabalhadores era central, e a própria conquista do socialismo passava por ela. A deficiência física o livrou do alistamento militar, mas a maior parte dos jovens socialistas, propositalmente, foi convocada e o Clube fechou suas portas.
Em 13 de agosto de 1917 Turim realizou um grande ato público de apoio à Revolução Russa e aos bolcheviques. A data coincidiu com a chegada de dois membros do governo de Kerensky. A multidão nas ruas gritava: Viva Lênin!
Uma semana depois eclodiu uma greve geral pelo pão. Rapidamente ela se transformou numa insurreição operária. Ergueram-se barricadas e ouviu-se o grito "façamos como na Rússia!". Cinquenta operários morreram e cerca de duzentos ficaram feridos. Turim foi declarada zona de guerra. A prisão de quase todos os membros da seção turinense do PSI levou Gramsci, pela primeira vez, a assumir uma função na direção partidária. No entanto, Gramsci acabou sendo preso.
L'Ordine Nuovo e os Conselhos de Fábrica
Em abril de 1919 Gramsci e um grupo de jovens socialistas de esquerda lançaram o jornalL`Ordine Nuovo, que se intitulava "resenha semanal de cultura socialista". Os outros jovens eram Palmiro Togliatti, Ângelo Tasca e Umberto Terracini. Sob influência da radicalização da Revolução Russa, o jornal rompeu com a linha "culturalista" e lançou-se a uma ação nitidamente política. No final de julho saiu o artigo de Gramsci intitulado "Democracia Operária".
Escreveu ele: "As comissões internas (de fábrica) são órgãos da democracia operária e é preciso libertá-las das limitações impostas pelos empresários e infundir-lhes vida e energia novas. Hoje, as comissões internas limitam o poder do capitalista na fábrica e desempenham funções de arbitragem e disciplina. Desenvolvidas e enriquecidas, deverão ser amanhã os órgãos do poder proletário que substituirão o capitalista em todas as suas funções úteis de direção e administração".
O grande objetivo dos redatores do L'Ordine Nuovo era elaborar uma estratégia compatível com a realidade italiana, que possibilitasse ao proletariado conquistar e manter o poder político. Mas para realizar tal objetivo era preciso responder a uma pergunta crucial: "Existiria na Itália (...) um germe, um projeto, um esboço de sovietes?".
A resposta de Gramsci era que sim. E este germe eram as comissões internas de fábricas. Mas era preciso mudar o seu caráter. Elas deveriam deixar de ser meros aparelhos dos sindicatos burocratizados, eleitas diretamente pelo conjunto dos trabalhadores, independentemente de serem ou não sindicalizados. Deveriam ter representação de todas as profissões: operários, empregados e técnicos. Assim, as comissões de fábrica se transformariam em verdadeiros Conselhos de Fábricas, embriões dos sovietes.
Em outro artigo, "Sindicatos e conselhos", publicado em outubro de 1919, ele criticou os sindicatos italianos, dirigidos pelos socialistas. "Os operários”, escreveu ele, “sentem que o conjunto da organização deles tornou-se um aparelho tão gigantesco que terminou por obedecer às leis próprias imanentes a sua estrutura e ao seu complicado funcionamento, mas estranhas à massa que adquiriu consciência de sua missão histórica de classe revolucionária (...) Sentem que, mesmo na casa deles, na casa que construíram com tenacidade, com esforços pacientes, cimentando-a com sangue e lágrimas, a máquina esmaga o homem e o funcionalismo esteriliza o espírito criador (...). Os sindicatos profissionais (...) são o tipo de organização proletária específico do período histórico dominado pelo capital. Num sentido pode-se afirmar que eles são partes integrantes da sociedade capitalista (...), os operários (...) tornam-se comerciantes da sua única propriedade, a força de trabalho e a inteligência profissional".
Em outubro de 1919, apesar da resistência da ala reformista do PS e da direção da CGT, mais de 50 mil operários elegeram diretamente suas comissões de fábrica; em 1920 esse número subiu para mais de 150 mil – somente em Turim. Entre 1919 e 1920 o movimento atingiu o seu auge. No mês de abril de 1920, diante da uma medida governamental que alterava a jornada de trabalho, os metalúrgicos de Turim ameaçaram deflagrar uma greve geral. Os patrões, tendo em vista enfraquecer os conselhos, ameaçaram fechar as fábricas e demitiram vários dirigentes operários. Olivetti, secretário-geral da Confederação das Indústrias, afirmou: "Não é possível que nas fábricas se constitua um organismo que se proponha a decidir à margem e sobre os órgãos diretivos da fábrica".
Os operários não se intimidaram e responderam com uma greve. Ela ficou conhecida como "greve dos ponteiros" e se transformou numa greve geral em Turim – em seguida se estendeu por toda a região do Piemonte, atingindo mais de 500 mil trabalhadores. As direções reformistas da CGT e do PSI recusaram-se a publicar os manifestos dos grevistas e buscaram de todas as maneiras fazer com que a greve não se estendesse para outras regiões. A própria convenção do PSI, marcada para Turim, foi transferida para Milão – buscou-se, assim, evitar a pressão dos operários em luta sobre os delegados.
Aproveitando o isolamento dos operários, os patrões partiram para a ofensiva e endureceram o jogo. Os trabalhadores foram obrigados a voltar ao trabalho. Afirmou Gramsci: "Abandonado por todos, o proletariado turinenese foi obrigado a enfrentar sozinho, com suas próprias forças, o capitalismo e o poder do Estado burguês (...). A intervenção enérgica de centrais sindicais poderia equilibrar as forças se não determinar a vitória", e concluiu: "regressam os operários às fábricas com a convicção de não terem triunfado, mas também não terem sido dominados".
Apesar da derrota e da repressão patronal que se seguiu, os operários conseguiram manter sua organização dentro das fábricas. A "Torino Rossa" continuava sendo uma ameaça constante à burguesia italiana. Era preciso quebrar a espinha dorsal da organização dos trabalhadores, era preciso destruir as comissões de fábrica.
Em junho, a Federação Italiana dos Operários Metalúrgicos (FIOM) apresentou novamente aos industriais suas reivindicações. Os patrões recusaram-se a atender a maior parte delas. Em algumas fábricas os trabalhadores começaram um lento processo de obstrução da produção. Os industriais, organizados na Federação das Indústrias, suspenderam as negociações. A FIOM decidiu-se, então, pelo desencadeamento de um processo de obstrução da produção por toda a Itália. A Federação das indústrias ordenou o fechamento de todas as fábricas, iniciativa que já vinha sendo tomada por alguns industriais isoladamente. Ao lockout patronal os operários responderam com uma nova tática, a ocupação das fábricas. Em Turim mais de 140 empresas foram ocupadas. Os operários passaram a organizar a produção, estabelecendo a autogestão. O movimento pouco a pouco foi adquirindo um caráter insurrecional. Mais de 500 mil operários participaram da luta.
A classe operária mostrou, na prática, que a burguesia era uma classe socialmente desnecessária para o desenvolvimento do processo produtivo. Os próprios trabalhadores poderiam organizar a produção sem patrões ou capatazes.
Os industriais pressionaram o governo para que assumisse posições mais duras contra os operários e não permitisse que as mercadorias que vinham sendo produzidas nas fábricas ocupadas pudessem ser comercializadas. Os empresários lançaram um ultimato ao governo, afirmando que "a retração das autoridades tolhe qualquer fé nos defensores das presentes instituições", levantaram dúvidas sobre "a capacidade do governo de garantir as liberdades constitucionais" e, por fim, ameaçaram suprir com "suas próprias iniciativas aquela defesa que lhes era recusada".
O governo, por sua vez, percebeu que não era possível se opor abertamente a um movimento daquela proporção. O próprio Giolitti, primeiro-ministro, respondeu aos industriais enfurecidos: "Como poderia o governo impedir a ocupação das fábricas? Trata-se de 600 manufaturas e indústrias metalúrgicas. Para impedir essas ocupações deveria ter colocada uma guarnição em cada um destes estabelecimentos, nas pequenas uma centena de homens, nas grandes alguns milhares. Teria empregado, para ocupar as fábricas, toda força de que poderia dispor. E quem vigiaria os 500 mil operários que ficariam para fora das fábricas?". O governo preferia usar outra tática e confiar nas direções reformistas do PSI e da CGT, uma posição que se mostraria acertada.
A FIOM, buscando romper com o isolamento que lhe era imposto, ofereceu a direção do movimento à CGT, que por maioria decidiu que a luta deveria se reduzir ao campo das reivindicações meramente econômicas e sindicais. A proposta de estender a greve para todas as categorias do país foi rejeitada.
O governo aproveitou a oportunidade e convidou as partes para negociar o fim do movimento; os patrões cederam em alguns pontos, concordaram com a concessão de um pequeno aumento salarial a título de indenização pela carestia e ampliação do direito de férias. A CGT e a FIOM decidiram aceitar a contraproposta patronal e defenderam o fim das ocupações. Em Turim a resistência durou ainda mais alguns dias.
A burguesia não estava contente com o resultado, ela havia concedido mais do que desejava. Fortalecia dentro dela a convicção de que era preciso pôr fim à experiência dos conselhos de fábrica. Entre 1921 e 1922, as principais lideranças foram demitidas e incluídas nas "listas negras". Mais de 31 mil operários também perderam seus empregos em Turim. Mas a derrota final só veio mesmo com a ascensão e consolidação do fascismo na Itália. O secretário da Confindústria enfatizou: "Durante a hora de trabalho, trabalha-se e não se discute. Na fábrica só pode existir uma autoridade. O poder da fábrica deve pertencer ao empresário".
Os limites teóricos de L'Ordine Nuovo
As propostas apresentadas por L'Ordine Nuovo foram atacadas pela direita socialista, acusadas de serem uma vertente do "sindicalismo revolucionário". Contraditoriamente houve críticas provindas da ala esquerda do partido. O principal expoente deste grupo, Amadeo Bordiga, acusou as teses de Gramsci de serem no fundo reformistas, uma concessão às opiniões sindicalistas.
As críticas de Bordiga, embora possuíssem um viés esquerdista, acertava pelo menos em três pontos essenciais. O primeiro era a constatação de que haveria uma subestimação do papel do Partido Comunista no processo de transformação revolucionário; o segundo, a supervalorização da experiência dos Conselhos de Fábrica, na ilusão de que seria possível um controle operário da produção nos marcos do domínio político da burguesia. O terceiro, o de compreender o espaço da fábrica como "território nacional da classe operária", caindo assim em um desvio economicista e corporativista. O território da classe operária só poderia ser o território abarcado pelo conjunto da nação.
Gramsci chegou a afirmar: "A organização por fábricas forma a classe (toda a classe) em uma unidade homogênea e coesa que adere plasticamente ao processo industrial de produção e o domina, para dele se apossar definitivamente. Na organização por fábricas, portanto, encarna-se a ditadura proletária". Para Bordiga, sem a direção do partido de vanguarda, as comissões de empresa poderiam se tornar um eficiente meio de dominação do reformismo sobre a classe operária, como vinha ocorrendo em vários países europeus.
Seria um erro, segundo ele, acreditar que "o proletariado pudesse se emancipar ganhando terreno nas relações econômicas, enquanto o capitalismo ainda detém, com o Estado, o poder político". Continuou: "Quando ainda vigora a dominação do Estado burguês, o Conselho de Fábrica nada controla (...). Concluímos: não somos contrários à constituição dos conselhos (...). Mas afirmamos que a atividade do Partido Comunista deve alicerçar-se sobre outra base: sobre a luta pela conquista do poder político (...). Enquanto o poder político ainda se acha nas mãos da classe capitalista, uma representação dos interesses revolucionários comuns do proletariado não pode ser obtida a não ser no terreno político (...)".
A essas mesmas conclusões chegariam os comunistas de L' Ordine Nuovo. Ainda no meio dos acontecimentos de 1920, eles iniciaram um balanço autocrítico dos erros cometidos pela direção do movimento de ocupações das fábricas. "Os operários turinenses”, afirmou Gramsci, “compreenderam que não basta invadir as fábricas e nelas hastear a bandeira vermelha para fazer a revolução, sabem que a conquista das fábricas não pode substituir a luta pela conquista do poder político (...), mas os operários turinenses compreenderam e sabem estas verdades porque conquistaram tais verdades experimentalmente através das discussões e da prática dos conselhos de fábrica". A partir deste momento Gramsci se jogaria de corpo e alma na tarefa de organizar o Partido Comunista da Itália e colocá-lo à altura das grandes tarefas da revolução democrática e socialista na Itália.
A constituição do Partido Comunista
Em 1919 Bordiga organizou uma fração comunista no interior do Partido Socialista Italiano. Ela tinha ramificações por todo o país. O centro irradiador de suas ideias era o jornal Il Soviet, editado em Nápoles. O grupo de Bordiga se intitulou "maximalista abstencionista", por sua rejeição à participação em eleições. A corrente comunista de Bordiga possuía uma linha política esquerdista. Suas fundamentações teóricas, contraditoriamente, eram as mesmas da direita social-democrata: o positivismo e o economicismo. A partir delas fez uma avaliação fatalista da crise do capitalismo e da vitória iminente do socialismo. O resultado foi o predomínio do doutrinarismo e do imobilismo político.
Bordiga e seu grupo eram avessos a construir uma corrente comunista de massas. Sua concepção de partido era de um pequeno agrupamento de revolucionários puros que não se contaminasse quer pelas lutas cotidianas quer pela ação político-institucional – e estivesse preparado para o grande dia da ruptura que chegaria pela própria dinâmica (espontânea) do desenvolvimento capitalista.
No Congresso do Partido Socialista em Livorno, realizado em 1921, as frações comunistas obtiveram 58.783 votos, a fração reformista de Turati apenas 14.685. No entanto, a fração centro-esquerda de Serrati conquistou 98.028 votos – esta se denominava "comunista unitária" e defendia o ingresso na Internacional Comunista (IC), mas era contra a expulsão da ala direita como exigia a direção desta organização.
Em 21 de janeiro os delegados da fração comunista, hegemonizados por Bordiga, se retiraram do plenário e fundaram o Partido Comunista da Itália (PCI). No comitê central de quinze membros, apenas dois eram ligados ao L' Ordine Nuovo: Gramsci e Terracini. Este jornal passou a ser o órgão central do novo Partido e Gramsci continuou sendo seu diretor-responsável. A linha esquerdista era amplamente hegemônica no novo partido. A primeira grande polêmica foi, justamente, quanto à participação nas eleições parlamentares que aconteceriam no mesmo ano. Bordiga era contra e Gramsci a favor. A intervenção da IC fez com que as posições abstencionistas fossem derrotadas.
Nenhum membro de L'Ordine Nuovo participou do segundo congresso da III Internacional. Mas, Lênin fez referências positivas às posições de Gramsci e seu grupo. Afirmou ele: "considero substancialmente justas as críticas e as propostas práticas, publicadas (...) em nome da seção turinense do próprio partido, na revista L'Ordine Nuovo (...) que correspondem plenamente a todos os princípios fundamentais da III Internacional".
As teses do segundo congresso do PCI, realizado na cidade de Roma em 1922, foram abertamente criticadas pela direção da Internacional como de natureza esquerdista. Em plena ofensiva fascista elas previam uma "fase social-democrata", que representaria a completa desmoralização do Partido Socialista e a ascensão do PCI. Elegiam a esquerda do PSI como alvo principal de seus ataques e se recusavam a entabular qualquer tipo de aliança com ele, inclusive com suas bases operárias. Neste congresso Gramsci foi eleito representante do partido junto à IC.
O terceiro congresso da IC, realizado em 1921, já havia levantado a palavra de ordem "frente única operária". Diante da ofensiva reacionária era preciso estabelecer alianças políticas entre comunistas e socialistas e mesmo constituir governos operário-camponeses. Ou seja, estabelecer objetivos intermediários que visavam a acumular forças para a conquista do socialismo. Bordiga recusou-se a aplicar essas resoluções – negou a justeza da tática de frente única com os socialistas e possibilidade de criação de governos operários.
A Internacional Comunista e a ascensão do fascismo
Em um artigo publicado em janeiro de 1921 Gramsci procurou, pela primeira vez, analisar as particularidades do movimento fascista italiano e identificar o que o diferenciava dos demais movimentos reacionários. Segundo ele, o fascismo possuía uma base de massa, sustentado na pequena burguesia urbana, que buscava recuperar espaço econômico e político perdido com a ascensão do capitalismo monopolista na Itália. No mesmo ano escreveu o artigo "Subversismo reacionário" que constatava que além de possuir uma base de massa destacava-se por não se prender à legalidade burguesa e, em certo sentido, negá-la. Para ele, o fascismo era a junção entre as massas pequeno-burguesas – impregnadas de um sentimento antioperário e antissocialista – e os agrupamentos reacionários ligados aos latifundiários no campo – mobilizados contra a possibilidade de uma revolução agrária no Sul.
Esses artigos ainda eram marcados pelo esquerdismo de inspiração bordiguiana. Era visível, por exemplo, a subestimação sobre a capacidade do fascismo de tomar o poder e uma excessiva crítica à social-democracia. Falava, inclusive, de uma possível fusão entre socialistas e fascistas e que "os socialistas se tornariam vanguarda da reação antiproletária". Tudo isto poucos meses antes da marcha fascista sobre Roma e sua ascensão ao poder.
Em maio de 1922 Gramsci chegou a Moscou, onde participou, pela primeira vez, da plenária da Executiva da IC. Ali as teses de Roma foram duramente criticadas e os comunistas italianos fizeram uma autocrítica superficial. O excesso de trabalho fez com que ele ficasse seriamente doente e fosse obrigado a se internar num sanatório soviético. Ali conheceu Júlia Schucht, que seria sua companheira por toda a vida.
No final de outubro de 1922, o PSI resolveu expulsar a sua ala direita e iniciou uma reaproximação com a IC. Os reformistas expulsos, comandados por Turati, fundaram o Partido Socialista Unificado. Bordiga buscou de toda maneira sabotar a tentativa de unificação entre a esquerda socialista e os comunistas. Somente em 1925, após sua derrota no interior do partido, Serrati e seu grupo, denominado terceirista, puderam ingressar nas fileiras do PCI.
Os esquerdistas, comandados por Bordiga, acreditavam que o governo fascista de Mussolini não passava de uma simples mudança de ministério. Gramsci num primeiro momento foi fiel à maioria esquerdista e defendeu a sua política junto à Internacional. O representante soviético Zinoviev culpou os comunistas italianos pelo fracasso da tentativa de unidade da esquerda e pela vitória do fascismo.
No entanto, em Moscou, Gramsci se pôs em total acordo com a tese de frente única operária e começou a articular a formação de um novo grupo dirigente para o PCI. Escreveu ele: "O camarada Lênin nos ensinou que, para vencer nosso inimigo de classe – que é poderoso, que tem muitas reservas à sua disposição –, devemos aproveitar qualquer rusga em seu seio e devemos utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, vacilante e provisório. Ele nos ensinou que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o fim estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação do seu território, sem ter atingido antes uma serie de objetivos táticos tendentes a desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto".
Entre 1923 e 1924 conseguiu ganhar para suas posições seus velhos camaradas Togliatti e Terracini. Em 1924 a corrente dirigida por Gramsci venceu o congresso do PCI. O Partido entrava numa nova fase. Começava a deixar de ser um partido de poucos, mas bons – como pretendia Bordiga. Afirmou Gramsci: "Foi na última Conferência que o nosso Partido se colocou explicitamente, pela primeira vez, o problema de se tornar o partido das mais amplas massas italianas, de se tornar o partido que realiza a hegemonia do proletariado no amplo quadro de aliança entre a classe operária e as massas camponesas".
Gramsci passou a advogar a necessidade de utilizar palavras de ordem intermediárias que não fossem apenas um apelo vazio de constituição de sovietes e a conquista da Ditadura do Proletariado. "Não é certo e nem mesmo provável”, escreveu ele, “que a passagem do fascismo à ditadura do proletariado seja imediata". Levantou a palavra de ordem Assembleia Constituinte Republicana, ainda que sob bases de conselhos de operários e camponeses.
Neste período Gramsci foi eleito para assumir a direção do PCI e compor um novo núcleo dirigente, juntamente com Togliatti e outros companheiros de L'Ordine Nuovo. Não podendo regressar à Itália, onde tinha prisão decretada, foi para Viena. Em janeiro de 1924, com a finalidade de criar vínculos permanentes entre comunistas e socialistas, criou o jornal L'Unità. Um jornal de toda esquerda socialista. Um instrumento da frente única, proposta pela IC.
O PCI também conclamou a unidade dos partidos de esquerda tendo em vista as eleições de março de 1924. Bordiga, ainda a principal expressão popular do Partido, se recusou a ser candidato. Mesmo assim o resultado eleitoral acabou sendo favorável aos comunistas que elegeram 19 deputados, entre eles Gramsci que se encontrava no exterior. Agora, munido de imunidade parlamentar, ele podia voltar para a Itália e agir mais abertamente.
Em junho de 1924 eclodiu o "caso Matteoti". Um grupo de fascistas sequestrou e assassinou o renomado deputado socialista Giacomo Matteotti, que havia feito duras críticas ao governo fascista. Abriu-se uma crise política profunda. Os deputados oposicionistas, entre eles os comunistas, abandonaram o parlamento e se reuniram em outro lugar chamado Aventino. Realizaram-se manifestações massivas contra o assassinato. O regime de Mussolini chegou a balançar. Os comunistas propuseram a realização de uma greve geral, mas a proposta foi recusada. Apesar disso, no dia 27 de junho, 500 mil trabalhadores entraram em greve contra o fascismo.
A assembleia do Aventino se recusou a constituir-se em poder paralelo e convocar o povo, como propuseram os comunistas. Agravaram-se as divergências internas na oposição: os comunistas chamavam o grupo parlamentar liberal de "semifascista". Pouco a pouco a iniciativa política passou para as mãos dos fascistas.
Constatando as vacilações da oposição, Mussolini cassou os mandatos dos ausentes e transformou o parlamento mutilado em assembleia nacional constituinte. Pouco antes os comunistas haviam resolvido reassumir suas cadeiras na Câmara dos Deputados. Em tese isto os excluía do decreto que cassava os mandatos. Mas, os fascistas não respeitariam nem a sua própria legislação e destituiriam também os deputados comunistas.
Em agosto de 1924 Gramsci foi eleito para o recém-criado cargo de secretário-geral do PCI. Em setembro Bordiga foi eleito secretário-geral da federação comunista de Nápoles, fazendo dela uma trincheira contra a direção partidária. Neste mesmo ano nasceu o primeiro filho de Gramsci, Délio.
Em 16 de maio de 1926 Gramsci subiria pela última vez à tribuna da Câmara dos Deputados para denunciar a lei contra a maçonaria. Esta, segundo ele, seria apenas o começo de uma nova onda contra as organizações operárias. Neste dia enfrentou pessoalmente o próprio primeiro-ministro Benito Mussolini. Dirigindo-se a ele afirmou: "Vocês podem 'conquistar o Estado', podem modificar os códigos, podem procurar impedir a existência das organizações nas formas até então vigentes, mas vocês não podem prevalecer sobre as condições objetivas nas quais são obrigados a se movimentar (...). Em outras palavras, nós queremos declarar ao proletariado e às massas camponesas italianas, desta tribuna, que as forças revolucionárias italianas não se deixarão abater e que o seu turvo sonho (do fascismo) não conseguirá realizar-se".
A sua postura combativa no parlamento e o seu desafio ao próprio Duce colocou-o na mira dos agrupamentos fascistas. Por isto foi obrigado a entrar na clandestinidade, mas recusou-se a seguir o conselho dos membros da direção para que abandonasse o país.
Carta ao CC da URSS
Em meados da década de 1920 a direção do Partido Comunista da União Soviética estava envolvida numa grave luta interna. Os dois principais expoentes desta disputa eram Stálin e Trotsky. Gramsci se preocupava com o desfecho deste conflito e as consequências negativas para o movimento comunista internacional. Apesar dessa justa preocupação não deixou de expressar sua opinião, amplamente favorável à maioria, encabeçada por Stálin e Bukharin.
Numa carta ao Comitê Central do Partido bolchevique, datada de outubro de 1926, afirmou: "Declaramos agora que consideramos fundamentalmente justa a linha política da maioria do CC do PC da URSS e que neste sentido, com toda certeza, deverá se pronunciar a maioria do Partido italiano, se se tornar necessário, (...) nos impressiona o fato de que a atitude das oposições envolva toda a linha política do CC, atingindo o coração mesmo da doutrina leninista da ação política de nosso Partido na URSS. São colocados em discussão os princípios da hegemonia do proletariado; são prejudicadas e postas em perigo as relações fundamentais de aliança entre operários e camponeses, ou seja, os pilares do Estado operário e da revolução". Continuou: "É fácil fazer demagogia nesse terreno; é difícil deixar de fazê-la quando a questão foi posta nos termos do espírito corporativo e não nos termos do leninismo, da doutrina da hegemonia do proletariado (...). Na ideologia e na prática do bloco das oposições, renasce plenamente toda a tradição da social-democracia e do sindicalismo, que até agora impediu o proletariado de se organizar com classe dirigente".
Defendeu energicamente a necessidade da unidade e disciplina no interior do partido, especialmente na fase de transição representada pela NEP. Mas alertou que "a unidade e a disciplina, nesse caso, não podem ser mecânicas e impostas; devem ser leais e fruto da convicção, não a de um destacamento inimigo aprisionado ou cercado". E por fim afirmou: "gostaríamos de estar seguros de que a maioria do CC da URSS não tem pretensão de exagerar na vitória na luta e está disposta a evitar medidas excessivas". Devido a esta última frase Togliatti não entregou a carta oficialmente à direção do PCUS e sim informalmente a Bukharin. Isto desagradou profundamente Gramsci.
As Teses de Lion e Alguns temas da questão meridional
Às vésperas do novo congresso agravou-se a ação divisionista de Bordiga. Gramsci se viu obrigado a publicar uma coluna diária no L'Unità intitulada "Contra o divisionismo fracionista, pela férrea unidade do Partido". O III Congresso do PCI se realizou em janeiro de 1926 na cidade francesa de Lion. Ele representou a vitória definitiva de Gramsci sobre Bordiga. As teses da maioria receberam mais de 90% dos votos. Foi a primeira tentativa de uma interpretação marxista da realidade italiana e de construir uma tática e de uma estratégia revolucionária nacional.
Foi uma dura resposta ao esquerdismo de Bordiga e a sua resistência de estabelecer uma política de aliança com a social-democracia, inclusive com sua ala esquerda, e a constituição de um partido de massas.
Escreveu Gramsci: "O companheiro Lênin dera a fórmula lapidar do significado das cisões, na Itália, quando disse ao companheiro Serrati: 'Separem-se de Turati, e depois façam aliança com ele'. Como era indispensável e historicamente necessário, devíamos nos separar (...) do reformismo (...) depois disso tudo, e continuando a luta ideológica e organizada contra aquelas correntes, procurar fazer uma aliança contra a reação. Para os dirigentes do nosso partido, qualquer ação da Internacional dedicada a obter uma aproximação com esta linha aparecia como se fosse uma implícita negação da cisão de Livorno, como uma manifestação de arrependimento".
O congresso também reforçou a importância da aliança operária e camponesa. Escreveu Gramsci: "Faz-se necessário que o nosso partido se aproxime estreitamente do camponês meridional, que o no nosso partido destrua no operário industrial o preconceito nele inculcado pela propaganda burguesa, segundo o qual o Sul é uma bola de chumbo que se opõe aos grandes desenvolvimentos da economia nacional, destruindo também no camponês meridional o preconceito ainda mais perigoso de que o norte da Itália seja um único bloco de inimigos de classe".
Em setembro de 1926 Gramsci começou e escrever um de seus textos mais importantes, o artigo "Alguns temas da questão meridional". Este ficou inacabado devido à sua prisão. Nele, ele trata fundamentalmente do problema da construção da hegemonia operária. Escreveu: "O proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante à medida que consegue criar um sistema de aliança de classe que permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora; o que significa, na Itália, (...) na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas". Continuou: "O proletariado, para ser capaz de governar como classe, deve se despojar de qualquer resíduo corporativo, de qualquer preconceito ou incrustação sindicalista (...). O metalúrgico, o marceneiro, o operário da construção civil etc. devem não só pensar como proletários e não mais como metalúrgicos, marceneiros etc., mas devem dar outro passo à frente: devem pensar como operários de uma classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe que só pode vencer e construir o socialismo se for ajudada e seguida pela grande maioria desses estratos sociais (...)".
Gramsci no cárcere
No início de novembro de 1926, o Conselho de Ministro tomou medidas que anularam as liberdades individuais, instituiu a pena de morte e o Tribunal Especial para julgar os crimes contra o Estado. A ditadura fascista fechou o cerco sobre a oposição. No dia 8 de novembro os comunistas ainda se reuniram para articular um protesto contra a votação do projeto que seria feito no dia seguinte durante a sessão da Câmara. No entanto, na mesma noite, Gramsci e demais deputados comunistas foram presos em suas próprias casas.
Depois de preso, Gramsci foi de prisão em prisão numa verdadeira via crucis. Seu julgamento foi marcado para 28 de maio de 1928 no Tribunal Especial para crimes contra o Estado. No julgamento, dirigindo-se aos juízes, afirmou: "Os senhores conduzirão a Itália à ruína: a nós comunistas caberá salvá-la". Em resposta, num duríssimo discurso acusatório, o promotor fascista afirmou: "É preciso impedir que este cérebro funcione durante 20 anos". No dia 4 de junho foi decretada a sentença: vinte anos, quatro meses e cinco dias de prisão.
Gramsci já estava há mais de um ano e meio preso e tinha agravado seu estado de saúde. Foi remetido à prisão de Turim. Em 8 de fevereiro de 1929, quase três anos após a prisão, começou a redigir seus Cadernos do Cárcere. Durante aproximadamente seis anos (até 1935) preencheu 33 cadernos escolares com uma letra miúda – equivalentes a 2.500 páginas de texto impresso. Escreveu sobre temas variados como linguística, crítica literária, história italiana, papel dos intelectuais e, principalmente, sobre teoria política (estratégia e tática no Oriente e Ocidente, concepção ampliada do Estado, hegemonia etc.). Ele conseguiu obter alguns livros, como as obras de Croce. Mas, não lhe foi permitido ter acesso aos livros de Marx, Engels, Lênin e aos documentos do movimento comunista internacional.
A doença se agravou na prisão. Em 7 de março de 1933 caiu desmaiado em sua cela. Diagnóstico: doença de Pott, lesões tuberculosas no lóbulo superior do pulmão, arteriosclerose, hipertensão arterial e gota. Havia perdido todos os dentes e quase dez quilos. Dores de cabeças, insônia e falta de apetite levaram-no a um estado-limite.
Em novembro daquele mesmo ano o governo autorizou sua transferência para uma clínica. Pela primeira vez se livrou da roupa de presidiário estampada com seu número de matrícula 7047. Duas dezenas de guardas vigiavam o perigoso paciente já moribundo. A situação continuou a se agravar. Agora tinha dificuldade para ler e escrever, mas ainda sonhava em voltar a ver sua terra natal, a Sardenha.
Finalmente, em 25 de abril de 1937 foi suspensa sua pena de prisão. Ele tinha agora 46 anos, cerca de dez passados em prisões fascistas. Estava livre, mas seu corpo e cérebro não mais respondiam. No mesmo dia de sua libertação caiu novamente e desta vez não se levantou mais. Em 27 de abril um derrame cerebral pôs fim à sua heroica vida.
Togliatti, ao saber da notícia, escreveu: "Gramsci foi assassinado do modo mais desumano, do modo mais bárbaro, do modo mais requintado e cruel. Dez anos durou a sua morte" e concluiu: "Com a sua morte desapareceu o primeiro bolchevique do movimento operário italiano".
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Bibliografia
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, L&PM, RS, 1981.
FIORI, Giuseppe. A vida de Antônio Gramsci, Paz e Terra, RJ, 1979.
LAJOLO, Laurana. Antônio Gramsci: Uma vida, Brasiliense, SP, 1982.
TOGLIATTI, Palmiro. Antônio Gramsci, Seara Nova, Lisboa, 1975
ACESSO EM 22/11/13
HORA:20:49

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